
OPINANDO:Ela disse mesmo, “humor que não ofenda não existe”?
Há frases que parecem soltas, mas dizem muito sobre quem as diz. Joana Marques afirmou: “o humor que não ofenda não existe”. Disse-o com naturalidade, como se fosse uma verdade que não precisa de explicação. O seu advogado repetiu que o humor sempre foi tolerado ao longo da História. E Ricardo Araújo Pereira apressou-se a defender que a liberdade de expressão não tem limites. Mas quando olhamos com atenção, percebemos que estes argumentos não servem para proteger a liberdade — servem para proteger quem os diz.
Em Portugal, há hoje um núcleo bem estabelecido de figuras públicas — humoristas, comentadores, apresentadores e jornalistas — que se defendem mutuamente sempre que alguém de fora os questiona. São presenças regulares nos mesmos programas de comédia, nas crónicas de opinião e nos painéis de comentário. Têm visibilidade constante e, acima de tudo, influência. E criaram um ambiente onde qualquer crítica ao que fazem é logo apresentada como um ataque à liberdade. Só que essa liberdade — no discurso deles — só parece aplicar-se aos seus próprios círculos.
Ricardo Araújo Pereira já não representa a figura do humorista independente. Está instalado num espaço mediático confortável, onde o poder de fazer rir se mistura com o poder de condicionar o debate público. No seu programa, aparecem com frequência jornalistas que entram na brincadeira como se fossem parte do elenco. E agora que é preciso noticiar com seriedade o caso de Joana Marques, a pergunta impõe-se: estarão a informar o público com imparcialidade?
Os jornalistas que participam com regularidade na crítica política humorística de RAP — comentando, rindo, apoiando e até ajudando a construir a narrativa — podem comprometer a sua independência. Tornam-se parte ativa de um projeto que não é apenas humorístico, mas também político e opinativo. Essa ligação pública e constante levanta uma exigência ética clara: quando esses mesmos jornalistas são chamados a cobrir ou comentar temas que envolvem esse universo, continuarão a fazê-lo de forma neutra?
Esta ligação umbilical entre jornalistas e humoristas não poderá levar-nos a ler as notícias que contornam os factos essenciais? A ouvir comentários que relativizam tudo? A presenciarmos a uma hesitação visível em fazer perguntas incómodas? Quem deveria relatar não poderá acabar por proteger? Quem deveria informar, pode hesitar em desagradar. E quem deveria manter distância, pode ficar tentado em entrar em cena.
Quem tem poder para publicar artigos de opinião contra as posições de RAP e Joana Marques, pode simplesmente não publicar e meter a opinião de quem pensa de forma contrária, “na gaveta” …
A esta promiscuidade mediática, Ricardo Araújo Pereira gosta de dizer, com aparente modéstia nos seus programas, que não tem qualquer poder — como se o rótulo de humorista o desresponsabilizasse do impacto que tem. No entanto, apresenta, comenta, ridiculariza e influencia. E os seus parceiros de painel seguem a mesma linha: alguns com cargos de assessoria junto da Presidência da República continuam a marcar presença na comédia política como se não estivessem ligados ao poder. Apresentam-se como meros consultores, como se isso apagasse a influência real que exercem na opinião pública e nos bastidores do Estado. Curiosamente, nunca — mas nunca — se reconhecem como parte de uma elite. Essa falsa modéstia tornou-se uma estratégia eficaz: colocam-se fora da estrutura de poder — enquanto ajudam, de forma ativa, a definir o tom com que os outros são avaliados.
Esta estratégia comunicacional faz-me lembrar o filme Man of the Year, onde Robin Williams interpreta um humorista que chega à presidência dos EUA, sem nunca deixar de repetir que “é só comediante”. A sátira torna-se poder, mas ele finge continuar de fora. Em Portugal, vemos o mesmo: há quem comente, goze, molde o debate — e depois diga, com um sorriso cínico, que “não tem poder nenhum”. Como se fosse possível estar em palco todos os dias e não ter responsabilidade nenhuma pelo que se diz.
É por isso que este caso não é apenas sobre humor. É sobre influência. Sobre o poder que certos grupos têm para gozar com os outros, manipular vídeos, criar montagens — e depois dizer que era “só uma piada”. E quando as pessoas visadas, como foi o caso dos músicos Anjos, reagem, os mesmos de sempre aparecem para dizer que “é só humor”, que “não houve má intenção”, e que “estamos num país livre”.
No outro caso mediático que se passa nos tribunais portugueses temos com mais evidência o poder desta classe junto da perceção publica: bastou a José Sócrates criticar os jornalistas, para que muitos deles se apressassem a desligar-lhe o microfone — quase em bloco, como retaliação corporativa. Disseram que não queriam “dar palco” a um arguido. Os jornalistas não foram escolhidos para defenderem a sua classe — foram escolhidos para servir o interesse público. E esse interesse exige ouvir, mesmo quando incomoda. É essa neutralidade que está a desaparecer: no humor, no comentário e, agora, no jornalismo.
Mas liberdade de expressão não quer dizer liberdade para manipular, esconder, distorcer ou atacar sem consequências. Quando uma montagem gera ameaças, perdas e medo, não há desculpa que disfarce o efeito. O que está aqui em causa não é humor — é poder. E quem o usa desta forma não está a fazer rir: está a impor-se.
No fundo, a frase “o humor que não ofenda não existe” acaba por ser a confissão que desmonta tudo. Porque se o humor precisa obrigatoriamente de ofender, então aquilo que chamam humor não passa de ataque com cobertura. E se essa é a única forma de fazer rir, talvez o que falta não seja liberdade.
Talvez o que falta seja talento.
Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor