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Opinando: “O inconsciente do bípede é um vulgar animal de imagens!” de Carlos M. B. Geraldes
“ A secção de propaganda fez centenas de milhar de exemplares da fotografia da varanda de onde Gottwald, de gorro em pele e rodeado pelos camaradas, fala ao povo.[…] Todas as crianças conheciam a fotografia, porque a tinham visto em cartazes nos manuais ou nos museus.”
Kundera, Milan, O Livro do Riso e do Esquecimento
O inconsciente do bípede “sem penas” é um animal de imagens!
Ao espreitarmos os meios de comunicação e redes sociais (Instagram, Facebook, Twitter , Youtube e outras coisas afim) somos confrontados, com um modo de ser humano assente em imagens que espelham uma infinita capacidade multiplicadora de danos e de benefícios que põem a nu a (in)capacidade do homem em captar a sua alma. Tudo isto resulta do facto do ser humano possuir nas suas competências criar, reter e reproduzir imagens: circunscrevendo o agir a um olhar que se exprime mediante imagens.
A imagem provoca o Homem, faz com que este se sinta poderoso e fraco, porque ele capta-a, manipula-a e adequa-a segundo um âmago cheio de caprichos e de interesses, assentes numa vontade de poder sobre ela. Para isso, faz uso de todos os meios que se encontram ao seu dispor tanto naturais como artificias, para convencer os seus iguais. Consequentemente, baralha-os e transforma-os em atores, espectadores, criadores incutindo-lhe assim, numa memória frágil, atenção, intensidade, desejo, ação, pecado, deboche, horror, salvação e verdade.
O inconsciente do bípede é um bicho “ sem penas” que vive de/nas imagens!
Toda esta habilidade criadora e manipuladora obriga-o a intervir perante o seu igual por meio de uma tecnologia, supostamente democratizada, como se de um Xamã todo-poderoso (que cria transes, êxtases, com imagens, numa consciência que ondula entre o racional e o irracional) como se de um poder predador se tratasse.
Cada ser Humano traz na sua individualidade uma imagem, como um “estigma” com vontade de afirmação, que quando se confronta com os restantes indivíduos que o circundam, anseia transmitir uma representação que presume desejar ser a mais poderosa.
Todos manipulam a sua imagem (in)conscientemente e a razão é sempre a de imprimir um efeito estético e ético ao olhar de quem vê, estando a valorização negativa ou positiva dependente de quem sofreu essa impressão e da sua escala de valores morais, éticos e estéticos. Posto isto, só poderemos dizer que “ A estética não é senão o domingo da Ética.”
Falar em imagem e descurar o papel dos mistérios da memória é o mesmo que esquecermos as nossas origens, porque é na (re)criação das memórias visuais que estabelecemos relações no presente com o passado e nos projetamos no futuro, aliás, atente-se às imagens rupestres da caverna de Altamira. Tudo isto antes de materializarmos as imagens visuais e escritas com a ajuda da técnica, na medida em que o “Estar vivo equivale a «olhar a luz do sol».” E, sob este olhar Grego, construímos a nossa memória, enquanto seres individuais pertencentes a uma história coletiva. Ora, esta capacidade humana de observar e criar imagens como se possuísse em si “uma inteligência inorgânica” direciona-nos para uma questão, que é essencial colocarmos: Será de facto a realidade que nos circunda real ou uma mera ficção que se exprime por imagens?
Isto, porque toda a imagem tem uma linguagem intencional e sabermos qual a sua intencionalidade é o mesmo que adotarmos uma atitude primária/natural para entender a origem das coisas, ou seja, saber qual o arche ou “princípio supremo” que lhe está oculto é o mesmo que deparamo-nos com um rol de questões, tais como: será que a imagem individual que descreve Homem é verdadeira? E as imagens do mundo dos sonhos? Que adequação tem o reflexo da nossa imagem num espelho em relação à realidade? Haverá alguma unidade na multiplicidade do agir da imagem no quotidiano? Porque é que as imagens nos provocam dor e prazer? Qual ou quais as razões que nos conduzem a aceitar o belo e a recusar o feio? O que tem uma imagem, supostamente feia, de belo? Para que horizontes uma imagem pode remeter o observador? Em que consiste o sentido simbólico das imagens alegóricas? Se nesta sequência de questões, possíveis entre milhares, já nos questionamos face a uma natureza que não é mediada pela tecnologia, como questionar um quotidiano, assaz agitado, quando afirmamos que habitamos um mundo mediado pelo audiovisual?
Nesta segunda perspetiva de abordar a imagem poderá ser sensato colocar as seguintes questões: consistirá a imagem de cada indivíduo num resultado da imagem de um poder instituído? Sendo assim, onde reside a sua verdadeira autenticidade? Será a imagem um verdadeiro poder ou uma falsa realidade imposta? Porquê investir numa imagem que nos cria expectativas que poderão ser goradas? Qual a razão que leva um ser humano a ambicionar ter a sua imagem exposta para ser observada? E aquelas imagens que nos chegam da Ucrânia com defuntos espalhados sem dignidade pelas ruas serão um portal para a mente viajar por um mundo que aparentemente, nos conduzirá à nossa verdadeira imagem?! Porquê criar tanta tecnologia para a produção de imagens? Qual o objetivo? Porque nos dominam elas desde a Pré-história? Porque são elas possibilidade de salvação e de pecado? Qual a sua essência? Porque se mata a humanidade pelas imagens? Porque é que a imagem nos educa? Será a imagem a verdadeira via de acesso à verdade? Porque a manipulamos se é a verdadeira via?
Todas estas questões servem de afã ao homem na procura da verdade. E abordar qualquer uma delas é partilhar, num tempo assente em imagens, lamentações, sombras agonizantes e no desmoronamento do pensar e da reflexão transformada num vale vazio de gente como nos retrata o excerto do poema The Hollow Men, de T.S. Eliott, para esta selva de imagens: «Nós somos os homens vazios/Somos os homens de palha/Apoiados uns nos outros/A parte da cabeça cheia de palha. Ai/As nossas vozes foram secas e quando/Juntos sussurramos/São serenas e sem sentido/Como vento em erva seca/Ou pés de ratos sobre vidro partido/Na secura da nossa cave/Molde sem forma, tonalidade sem cor,/Força paralisada, gesto sem movimento;/Os que cruzaram/Com os olhos certeiros, para o outro reino da morte/Lembram-se de nós – quem sabe – não de/Violentas almas perdidas, mas somente/De homens vazios/Homens de palha.»
Carlos M.B. Geraldes (PhD)
Kundera, Milan, O Livro do Riso e do Esquecimento, Trad. Teresa Coelho, Circulo de Leitores, Lisboa, 1988
Piers Vitebsky, O Xamã, 1ª edição, col. Grandes Tradições Espirituais, Trad. Alfonso Teixeira, Taschen Gmbh, 2001
Encarnação Reis, «Introdução à Estética.» Departamento de Estudos Filosóficos, Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra,1990, fl.6
Jean- Pierre Vernant, O Homem Grego, 1ª edição, trad. Maria Jorge Vilar de Figueiredo, Editorial Presença, Lisboa, 1994.p.181
F. E. Peters, Termos Filosóficos Gregos – Um Léxico Histórico, 2ª Edição, trad. Beatriz Rodrigues Barbosa, F. Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1983, p36