Opinando: “Infocracia/Dataísmo: o fim dos partidos políticos”, de Carlos M. B. Geraldes de
“ O ser portador de dados e de informação não é dócil nem obediente. Mas julga-se livre, autêntico e criativo. Produz-se e apresenta-se em cena.”
“ Quanto mais dados criamos, quanto mais intensivamente comunicamos, mais eficiente se torna a vigilância”
Byung-Chul Han, Infocracia. A Digitalização e a Crise da Democracia, 1ª edição, relógio D’ Água editores, Lisboa, 2022.pp.10-12
Ler Byung-Chul Han é sinónimo de estarmos ante um cirurgião higiénico do agir humano com capacidade racional de bisturizar a tela social e comunicativa, para além do labirinto mental em que nos enredamos. A narrativa que está a desenhar-se e a fazer emergir o novo paradigma tem como base um novo regime que o chama de infocracia “ forma de domínio no qual a informação e o seu processamento, por meio de algoritmos e de inteligência artificial, determinam de um modo decisivo os processos sociais, económicos e políticos”. Isto é o lugar onde se exploram informações e dados – o que interessa é o acesso à informação – a utilização da vigilância assente no princípio da quantidade de dados que criamos/comunicamos mais eficiente será a vigilância, o controlo e prognóstico do comportamento, da ciência do destino, a nível psicopolítico.
Os indivíduos passam a ser dados, deixando assim de ser uma engrenagem no interior da maquinaria dos regimes tradicionais, dócil com corpo que pode ser submetido, utilizado, alterado e aperfeiçoado como máquina de produção, gado laboral portador de energia para passar a ser portador de dados e de informação. A vigilância ocorre através de dados que o sujeito comunica. O interesse já não é o corpo, uma vez este ser um objeto de estética e de fitness monopolizado pela indústria da beleza, mas sim o tomar posse da “psique” por meio da psicopolítica.
O confinamento é regime aberto, é a sensação de liberdade que o sujeito tem em que se assegura o domínio sobre ele. A liberdade e a vigilância coincidem. Assim, o sujeito expõe- se sem qualquer coação externa. Ele move-se por uma necessidade interior. O indivíduo esforça-se por si mesmo para alcançar a visibilidade. Dá-se a ver. Coloca-se de livre vontade sob os holofotes, ou melhor ainda, procura a exposição. É a política da transparência onde tudo tem que se apresentar com a informação e o seu imperativo tem como princípio assentar na livre circulação da informação e não o indivíduo, tornando-o num prisioneiro da informação.
O indivíduo, que supostamente seria inacessível, torna-se acessível, explora-se a sua liberdade sem o oprimir, controla-se a nível do inconsciente e, em vez de o fazerem vergar, estimula-se tudo que o faz sentir-se positivo. Esqueçam os imperativos categóricos e hipotéticos de Kant, caso alguma alminha ainda tenha a ousadia…
Os dataístas têm em mente uma sociedade capaz de prescindir por completo da política. Ora vejamos o seguinte raciocínio:
Se em todas as camadas sociais existe uma vasta conformidade com o sistema (nova situação social). Logo, torna-se desnecessária a ação política em sentido enfático, os conflitos de classe e de interesse reduzem-se.
Tudo isto assenta no princípio de que todos partidos serem cada vez mais semelhantes e por esta razão perdem o seu significado.
Para os dataístas, os partidos só fazem sentido numa sociedade em que predominam as desigualdades sistémicas, como a injustiça distributiva ou as diferenças de classe a grande escala. Segundo o dataísmo, num futuro próximo, a democracia partidária deixará de existir dando lugar à infocracia como pós democracia digital. Os políticos serão substituídos por especialistas e informáticos que administrarão a sociedade para lá dos pressupostos ideológicos e independentemente dos interesses do poder.
A política será assim substituída por gestão de sistemas baseados em dados (as decisões socialmente relevantes tomar-se-ão por meio de big data e de inteligência artificial) e os discursos políticos passarão para um segundo plano. Assim, a otimização do sistema social prometerá um aumento de dados e de algoritmos inteligentes para todos e não discursos de comunicação política de baixa qualidade.
O aumento de dados para esturricar é sinónimo de felicidade para todos!
Onde os dataístas fundamentam a sua visão de sociedade?
Jean-Jacques Rousseau (do séc. XVIII, importante filósofo, teórico político, escritor e compositor autodidata genebrino, considerado um dos principais filósofos do iluminismo e um precursor do romantismo, entusiasta do método estatístico) desenvolveu uma racionalidade aritmética que pode existir “ sem comunicação” e que se opõe à racionalidade comunicativa. Rousseau entende a Vontade Geral como pura grandeza matemática/numérica que se encontra para lá da ação comunicativa. Não é a comunicação, mas uma operação aritmética que determina a vontade geral. «Muitas vezes há uma grande diferença entre a vontade de todos e a vontade geral: esta só tem em conta o interesse comum enquanto a outra se refere ao interesse privado e não é mais do que uma soma de vontades, o mais e o menos que destroem mutuamente, só resta como soma das diferenças da vontade geral» .
A condição que possibilita a identificação da vontade geral é o facto de os cidadãos não comunicarem uns com os outros: não há discurso porque toda a comunicação distorce a vontade geral e, dado Rousseau excluir a formação de associações e partidos políticos, permitirá eliminar as “diferenças” a favor da vontade geral. Isto é, quanto mais são os diferentes dados de que se dispõe, mais autêntica será a vontade geral determinada. Por esta ordem de razão, Rousseau é considerado o primeiro dataísta, a sua racionalidade aritmética, que renuncia totalmente ao discurso e à comunicação, aproxima-se da racionalidade digital. No regime da informação, as estatísticas de Rousseau são substituídas pelos informáticos.
Com a utilização da big data a inteligência artificial tem de determinar a vontade geral, ou seja, «o interesse comum» de uma sociedade. Esta perspetiva dataísta fundamenta-se numa defesa do behaviorismo digital que rejeita a ideia de um indivíduo que atua de forma livre e autónoma.
O behaviorismo está convencido que é possível prever e controlar com precisão o comportamento de um indivíduo. O conhecimento total torna obsoleta a liberdade do indivíduo. «O “ homem autónomo” é um instrumento utilizado para explicar o que não sabemos explicar de outra forma. É um produto da nossa ignorância.» Ao contrário da racionalidade comunicativa, a racionalidade digital não tem o seu ponto de partida no indivíduo, mas no coletivo. O indivíduo, para o dataísmo, que atua de forma autónoma, é uma ficção. São as leis da física social que determinam o nosso comportamento. Neste sentido, não somos muito diferentes das abelhas e dos macacos, o que nos permite observar os seres humanos e extrair regras de comportamento, de reação e de aprendizagem.
Há uma ampliação do “data-mining”, explorar de grandes quantidades de dados à procura de padrões consistentes, com o “reality-mining” em que as pessoas são equipadas com os chamados sociómetros que registam minuciosamente a linguagem corporal criando uma grande quantidade de dados comportamentais. O “reality- mining” com sensores digitais torna a sociedade calculável e controlável.
O dataísmo concebe a sociedade como um organismo funcional: o que conta é apenas um intercâmbio de informação entre unidades funcionais. A planificação, o controlo e o condicionamento substituem a política e o governo.
No universo dataísta, a democracia dá lugar à infocracia baseada em dados, preocupada com otimização da troca de informação.
A análise de dados da esfera pública discursiva é substituída pela inteligência artificial que, subsequentemente, não só nos reconfigura da realidade como também coloca mais um termo à democracia e eleva o totalitarismo, sem rosto e ideologia, fundamentado numa base de dados e num indivíduo incapaz de pensar, que persiste na ausência de indignação pessoal e na entrega da sua vontade de querer. O sujeito da “coisa pública”, do mundo comum ao qual nos poderíamos ligar pelo nosso agir, acaba por desaparecer sofrendo a sua sentença de morte, quer nos espaços públicos e privados, enquanto ser eminentemente social e animal político (anthropos physei politikon zoon).
Carlos M. B. Geraldes, PhD