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Diretor: Paulo Menano

Demokratia: Nascimento, Declínio e Renascimento – O Ciclo Inabalável


Demónax de Mantineia[i], um legislador grego de toga, sandálias nos pés e barba desalinhada, da cidade agrícola grega de Cirene nas costas da Líbia, em 550 a.C., dirigiu-se às mulheres/Pítias do Oráculo da cidade de Delfos[ii], o “umbigo do mundo”, para obter um conselho sobre a melhor forma de Cirene poder, por direito, resistir à tirania do rei coxo e gago, Bato III. As palavras ditas pela Pitonisa e transmitidas  por Demonáx levaram as pessoas da cidade-estado de Cirene a reunirem-se para falar sobre as suas vontades e qual o modo  mais adequado de se governarem.  Com este gesto, Demónax estava longe de imaginar que esse método seria o registo mais antigo da invenção de uma nova forma de viver, conhecida pelos gregos como “demokratia”.

Até ao presente momento, nenhum discurso ou lei de Demónax de Mantineia sobreviveu, tornando-o um símbolo envolto em mistério, o tema da democracia é repleto de enigmas, confusões e suposições.

O substantivo feminino “demokratia” foi um termo que surgiu modestamente, mas teve um impacto significativo. A sua trajetória já tinha um objetivo traçado: o envolvimento de milhões de pessoas em todo o mundo, representando uma palavra que para além do potencial de transformar o mundo, é ainda subestimada e incompreendida.

Apesar de Atenas não ter sido o berço da “demokratia”, foi lá que a ideia e a  prática foram desenvolvidas. No entanto, a palavra “democracia” é mais antiga do que os gregos clássicos sugerem, as suas raízes remontam ao período Micénico e a outras comunidades do Peloponeso, durante a Idade do Bronze. A prática democrática de autogoverno não foi uma inovação grega; a suas origens podem ser indiciadas no “Oriente”, nas terras correspondentes à Síria, Iraque e Irão.

O som peculiar do substantivo “demokratia” transformou radicalmente a história. A sua influência é evidente desde o “Oriente” até as civilizações do subcontinente indiano. A democracia desnatura o poder, desafia as pretensões de deuses, natureza e privilégios, abrindo caminho para formas de governo baseadas na diferença entre iguais.

A “demokratia” ateniense destacava a importância do autogoverno sobre os negócios privados. A ágora, local de discussões públicas, era estritamente separada dos negócios, indicando que a política deveria preceder outros interesses. O esquecimento da Pnix, local onde as decisões eram tomadas, que hoje é pisada por uma multidão de turistas cegos de alma sem conhecimento algum sobre o espaço, o que contrasta com a vitalidade que ela tinha durante a “demokratia”.

Os atenienses personificavam “demokratia” com qualidades femininas, associando-a à divindade Dèmokratia. Embora as mulheres fossem excluídas da política, participavam em rituais e festas religiosas. A democracia era vista como uma figura divina com poder sobre a vida e morte de Atenas.

A democracia também morre por causa de líderes demagogos e cidadãos que não se importam muito. A primeira morte aconteceu em 319 a.C., quando Antipáter ficou doente e morreu. Depois disso, Demétrio de Faleron foi nomeado governador de Atenas. Cassandro, filho mais velho de Antipáter, era um homem que sempre  engendrava  planos nada recomendáveis.

Demétrio governou a cidade durante uma década. Após este período, os democratas da cidade voltaram à carga, fizeram acordos com os macedónios, não se opuseram às suas bravatas sobre como iriam libertar outras cidades gregas da oligarquia, e tudo isso para, no fim, se verem de novo sujeitos a mais uma oligarquia. A força do seu persistente espírito de resistência a tal que, em 287 a.C., uma vez mais e contra todas as expectativas, os Atenienses arranjaram maneira de recuperar as suas instituições de autogoverno, e, desta vez, conseguiriam ferrar nelas as suas garras por uns bons vinte e cinco anos. Mas os Macedónios não estavam dispostos a consenti-lo. No ano de 260 a.C., Antígono Gónatas, filho de Demétrio, ordenou às suas tropas que reconquistassem a cidade. Os democratas de Atenas foram esmagados e, desta feita, seria de vez. E assim morria uma democracia. Fora a sua primeira morte, mas fora lenta e dolorosa.

A reanimação da democracia, contra todas as expectativas, começou a ocorrer no alvorecer do século XIX. O renascimento de Atenas como um exemplo democrático foi um empreendimento gigantesco, impulsionado por esforços políticos e intelectuais, especialmente pelas obras de historiadores europeus notáveis.

Os nomes de Jean Victor Duruy (Paris, 1811-1894) e Ernst Curtius (1814-1896) tiveram um impacto significativo nesse ressurgimento. Duruy, que trabalhou para Napoleão III e, posteriormente, Ministro da Educação na França, publicou uma edição ilustrada sobre a história da Grécia antiga. Já Ernst Curtius, um historiador alemão, liderou expedições arqueológicas na Grécia, tendo descoberto a lendária cidade de Tróia, e publicou uma vasta história da Grécia.

Outro relato crucial foi escrito por George Grote (1794-1871), um banqueiro, pensador utilitarista e democrata autodeclarado. A sua “História da Grécia” teve uma ampla repercussão, defendendo a democracia ateniense contra às críticas e ao esquecimento. Grote, filho de uma puritana e um comerciante, não teve a oportunidade de estudar na universidade devido à decisão do pai. Mesmo assim, tornou-se um autodidata ávido por leitura, liderando um círculo de discussão em Londres. Ele não apenas convenceu críticos, como Karl Marx, de que a democracia era mais que um estratagema burguês, mas também defendeu os gregos, especialmente os atenienses, contra a injustiça histórica.

George Grote via a experiência da democracia ateniense como um exemplo valioso. A sua perspetiva, compartilhada por Jeremy Bentham e James Mill, pai, e John Stuart Mill, filho, destacava que, apesar da propensão humana para o egoísmo, a liberdade e a educação para todos eram remédios essenciais para alcançar a máxima felicidade para o maior número possível de pessoas.

O direito à liberdade, concebido na Grécia clássica como a ausência de escravidão e, na Roma republicana, como independência de outros privados, pressupõe a democracia como um regime progressista e natural para o indivíduo. Essa ideia emerge como precursora do liberalismo, mesmo com sementes no cristianismo de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, permitindo que cada indivíduo aja como agente de ação.

A magnitude humanista e liberal desse conceito rompe com regimes absolutos, monarquias e oligarquias, possibilitando a autonomia individual em decisões económicas, sociais e políticas. George Grote e os seus amigos, defensores do liberalismo, enfrentaram resistência conservadora, destacando-se por posições revolucionárias, como os direitos dos animais e a igualdade de género.

O liberalismo triunfou, impulsionando o progresso social no Ocidente, confrontando regimes comunistas e adotando uma abordagem social-democrata no século XX. A democracia, catalisadora de um Estado fundamentado em liberdades individuais, proporcionou uma ampliação dos direitos, com o Estado a atuar como garante de justiça, igualdade de oportunidades, educação gratuita, segurança social, entre outros.

No contexto intelectual e tecnológico do século XIX, Grote, desafiando a ordem estabelecida, reforçou a superioridade do regime democrático ao recordar os atenienses. O seu monumental trabalho reavivou a convicção de que a democracia ateniense é vital para os tempos modernos, influenciando princípios que definem a condição humana. Os ataques contemporâneos à democracia são considerados desadequados e reveladores de medo e insegurança.

Apesar de ser compreensível, a democracia ateniense enfrenta dificuldades, sendo alvo de críticas que a impedem de evoluir para uma ontocracia ou regredir para uma tirania. A crença na democracia deve ser aceite como doutrina universal, e a liberdade de escolha deve prosperar dentro de cada um, rumo a uma ontocracia e não para uma degeneração do comportamento humano.

Perante às novas formas de iliberalismo, a democracia continuará a ser a vanguarda do futuro?

Carlos M. B. Geraldes, PhD.

 

Observação: Este artigo constitui uma versão revista e adaptada de dois textos mais extensos previamente publicados.

[i] Keane, j., Vida e morte da democracia, ed. 70, 2009

[ii] Taplin, O., Fogo Grego, Gradiva, 1990