Mais Beiras Informação

Diretor: Paulo Menano

Opinando: Autárquicas, um mundo de fantasia populista, demagógico e de caça desenfreada à fragilidade humana.


Webinar em nota a meio-tom: Autárquicas, um mundo de fantasia populista, demagógico e de caça desenfreada à fragilidade humana.

 

“A gente precisa de carne.”

“Para a caça. Feito na guerra. Sabe como é — camuflagem. As coisas disfarçadas de outra coisa—”

[1] William Golding, O Deus das Moscas

É com o romance, O Deus das Moscas, de William Golding, vencedor do Prémio Nobel em 1983, livro que coloca como centro de atenção um grupo de garotos britânicos, presos numa ilha desabitada, e a sua tentativa desastrosa de se autogovernarem. Neste enredo surge um petiz com o nome de Jack que não só organiza uma equipa de caça responsável por descobrir fontes de alimento como também consegue atrair recrutas do grupo principal, opositor, prometendo festas de porco cozido de tal modo a que os membros se iniciem na pintura do rosto, no encenar de rituais bizarros, incluindo sacrifícios à besta.

O que as eleições autárquicas têm em comum com o livro, O Deus das Moscas, de William Golding? Na essência, tudo!

  1. a) O discurso é simplesmente demagógico com recursos linguísticos assentes em falácias, com argumentos que contrariam as relações lógicas entre os elementos, na omissão, nas informações incompletas, excluindo possíveis problemas para resolver a questão e tornando falsa a realidade exposta, redefinição de linguagem, utilização de eufemismos a fim de atenuar uma realidade difícil que implicaria a culpa daqueles que fazem o discurso; na táctica de distracção, no não responder diretamente a uma questão ou mudar de assunto debatido de forma repentina a fim de escapar da pressão do interlocutor, na demonização e no falso dilema.
  2. b) Na maioria dos discursos somos confrontados com as falácias da irrelevância, em que as premissas não são relevantes para a conclusão, na insuficiência de dados, as premissas não fornecem dados suficientes para garantir a verdade das conclusões, e por fim a ambiguidade da retórica em que toda a linguagem é dúbia.
  3. C) O Argumentum ad Populum, populista, é a falácia que imperou na campanha, porque apesar de ser bastante efetiva ao ser utilizada, a aprovação da maioria não é suficiente para comprovar a verdade de um argumento.

É o argumento do apelo ao povo, Argumentum ad Populum, em latim, é um tipo de falácia não-formal e é a tentativa de, ao despertar as paixões e o entusiasmo da multidão, ganhar o apoio do público ouvinte ou o leitor para uma determinada conclusão. Publicitários e políticos estão entre aqueles que mais fazem uso desse tipo de falácia. Esta falácia consiste em apelar à opinião da maioria (ou ao povo, do nome latino) para defender que uma dada afirmação é verdadeira. A forma do argumento é a seguinte: A maioria das pessoas diz que P. Logo, P.

Sentimentos entusiastas e encantamento são o seu rastilho.

Esse tipo de falácia envolve duas diferentes abordagens, a direta e a indireta. Na abordagem direta, a pessoa que tem a palavra dirige-se à multidão a fim de despertar um sentimento humano de pertença, de modo a que todas as pessoas presentes se unam para a aprovação do que lhe está sendo dito, dando a sensação de que o argumento ou a conclusão apresentada está correta. Esta abordagem desperta uma espécie de mentalidade de massa e qualquer indivíduo se vê compelido a concordar com a multidão, sob o risco de ser excluído e perder a identidade e a segurança.

  1. d) Falácia da ignorância refutar um enunciado só porque ninguém o conseguiu provar que é falso, isto é, não se conseguiu provar a verdade de A, logo A é falso.
  2. e) Ora, este modo de agir politico ardiloso, arteiro, astuto, buliçoso, enganoso, espertalhão, invencioneiro, malicioso ou que lhe quiserem chamar deve requerer da parte dos eleitores/cidadãos responsabilidade, reflexão, racionalidade e maturidade para eleger os seus representantes /líderes e pedir a prestação de contas pela administração da “coisa pública” e não embarcar em populismos irresponsáveis assentes em renuncias à boa arte de governar
  3. f) A política não pode, em qualquer momento, ser um mero ato de escolha de caras e exposição de cartazes ou acreditar que a democracia, regime que proporciona mais prosperidade compartilhada à maioria, é tão forte que podem votar naqueles que querem acabar com elas e continuar desfrutando do sistema que estão constantemente a desferir-lhe golpes de estado à direita e à esquerda.
  4. g) Como sei que o voto nas autárquicas é populista?

Com a mobilização contínua e permanentemente das suas bases e modo eterno retorno que o carateriza, porque evoluímos como seres humanos para preferir umas ideias messiânicas, um salvador que a encarne de frente a um inimigo a ser culpado por tudo. Começa quando os mais lúcidos desistem de dizer a verdade frente às fantasias ideológicas que agradam a maioria por medo de serem impopulares e apontados com o dedo. O seu poder emana de ocupar todos os espaços ou até reduzi-los a porta-vozes do seu programa. Torna a sua praça pública e nela o povo/eleitor manifesta a sua majestade: a massa vociferante que grita dia e noite: “O poder aos que gritam! O poder ao seu programa eleitoral!”.

Será isto suficiente? Não! O populismo precisa de um inimigo obsessivo e omnipresente para o culpar por todas as desgraças e cuja derrota significará o advento da plenitude popular. O populismo despreza a ordem legal democrática vigente, mas não tem caráter para o assumir publicamente dado ser hipócrita para substituí-la por uma suposta vontade popular direta que emana da indiscutível legitimidade de sua causa. Por isso, não hesitam em usar os fundos públicos que controlam de maneira discricionária. Os cidadãos entregam o poder como se fosse um sacrifício/oferenda bíblico(a) a uma pessoa aos seus caçadores. Substitui-se a legalidade pela sua legalidade. Abominam-se os limites racionais e ignoram-se aqueles que não a professam. Guardam para si de forma leviana que a democracia é indestrutível e que lhes permite votar contra ela, esquecendo que na realidade é frágil, doentia e que a democracia mal se enraizou na história da humanidade.

  1. H) Aproveito aqui o ensejo para felicitar os cidadãos eleitores pela forma ordeira, calma e transparente como souberam, uma vez mais, dar provas de civismo, maturidade política, em atos dessa natureza.

Em suma, citando, uma vez mais, William Golding, O Deus das Moscas, o populista «Jack ficou ali parado, encharcado de suor, sujo de terra escura, manchado por todas as vicissitudes de um dia de caçada.»

                                                                                       Carlos M.B. Geraldes (Ph.D.)

 

 

[1]  William Golding, O Deus das Moscas, Dom Quixote, 2011